“… Aos leigos engajados, como filhos da Igreja e em nome da sua fé, nas tarefas temporais; aos leigos que, por algum motivo, estão pouco empenhados, para que se sintam estimulados a tomar seu lugar na Igreja e no mundo…” (Mensagem do Papa aos Bispos do Brasil, 4 abril de 1986).
1. Desafios que a realidade hoje apresenta à Igreja
Após duas décadas de um regime que consolidou, no Brasil, um modelo autoritário de capitalismo concentrador de riqueza, vivemos um período de transição que traz esperança de um futuro melhor.
Para que esta esperança se torne realidade devemos superar os muitos obstáculos que hoje impedem que se viva conforme a dignidade própria de filhos de Deus.
Dentre tais obstáculos, assinalamos aqueles que são, hoje, os principais desafios à missão evangelizadora da Igreja.
Em primeiro lugar, os problemas do mundo do trabalho urbano e rural: a situação angustiante dos desempregados, “dos subempregados”, dos que ganham salário mínimo e uma grande maioria da economia submersa que ganha menos ainda que um salário mínimo e dos milhões de trabalhadores rurais sem terra.
A nobre luta pela justiça social, onde se destacam a luta dos trabalhadores pelos seus direitos e a luta pela terra, no campo e na cidade, é indispensável para que a Igreja tenha credibilidade no anúncio do Reino.
Outros desafios no mundo político: Saudamos o fim do regime autoritário e a convocação de uma constituinte, mas já manifestamos nossa apreensão sobre os caminhos adotados para a sua concretização, à medida que vemos limitada a participação popular nesse processo, do qual deveria emergir uma nova ordem social justa e igualitária.
É preciso que o atual momento político seja ocasião para a consolidação de um poder realmente emanado das bases populares para que não sejam frustradas as esperanças de milhões de brasileiros.
Observamos, apreensivos, recuos em medidas que visam atender às aspirações urgentes do nosso povo. Dentre estes, destacamos os que se observam na questão da reforma agrária, cujas reformas foram anunciadas em termos corajosos num primeiro momento, não se confirmando até hoje as medidas então prometidas.
Desafios importantes é também o que traz o mundo da cultura, onde se assiste hoje à difusão manifestante da cultura consumiste eliminando o potencial criativo do nosso povo; sem negar o valor das técnicas e das ciências, temos que conjugá-las com nossas raízes culturais mais autênticas, sem submissão a modelos culturais pré-fabricados.
Assinalamos também o desafio presente no mundo da família, principalmente no caso das famílias pobres, às quais falta o apoio da sociedade para que tenham uma vida digna e que ficam entregues à própria sorte, particularmente os menores e as mulheres.
Ultrapassando os limites da área familiar, surge ainda como desafio a desigualdade entre homem e mulher, que nem a sociedade, nem a Igreja conseguiram alterar positivamente.
À mulher cabe sempre o serviço, a responsabilidade mal repartida, o salário desigual, a participação dificilmente conquistada e o poder de decisão inatingível.
Enfim, lembramos a situação da juventude, sujeita a todos esses desafios e que deve encontrar meios próprios para enfrentá-los. Todos esses desafios da realidade brasileira são hoje um apelo à Igreja para engajar-se de modo cada vez mais profundo e corajoso no grande movimento histórico de construção de uma nova sociedade justa e fraterna.
2. Como a Igreja está respondendo aos desafios: fatos notáveis
Frente aos grandes desafios, a Igreja vem buscando respostas, algumas das quais podem ser qualificadas de notáveis pelos seus efeitos especialmente benéficos quanto à nova forma de sua presença no mundo. São também notáveis por realizarem concretamente o projeto da Igreja definido pelo Concílio Vaticano II.
2.1. As comunidades eclesiais de base (CEBs)
As CEBs, nova forma de ser Igreja, de ser Povo de Deus, multiplicam-se hoje no Brasil e em quase toda América Latina, recuperando a identidade das comunidades primitivas descritas nos Atos dos Apóstolos.
Nascidas entre os pobres e oprimidos, as CEBs e as Pastorais específicas são hoje o mais eloquente testemunho da Igreja que, compreendendo o sentido histórico da irrupção do Reino, vai comprometendo a todos na tarefa de edificá-lo desde aqui e agora através das conquistas parciais e imperfeitas que o antecipam. Esse espírito que anima as CEBs, mostrando a força dos fracos, as torna um dos mais notáveis fatos da vida da Igreja após o Concílio.
2.2. As Assembleias do Povo de Deus
As Assembleias Diocesanas e outras formas de participação conjunta de leigos e hierarquia nas decisões da Igreja, tornam hoje palpável a proposta de corresponsabilidade do Povo de Deus nos organismos decisórios que iluminam e animam. Nessas Assembleias todos participam e se respeitam mutuamente, reconhecendo a dignidade que a todos confere o Batismo. Assim se realiza a proposta do Concílio, que define a Igreja não mais a partir da hierarquia, mas como um povo igualmente comprometido na sua missão evangelizadora, no qual exercem diferentes ministérios igualmente dignos e necessários ao anúncio efetivo do Reino.
2.3. A Palavra de Deus na vida
A descoberta da Bíblia no pós-Concílio veio marcada por sua estreita participação com os fatos da vida cotidiana, através da reflexão comunitária, como se dá nos Círculos Bíblicos e nos grupos de reflexão. O texto bíblico vai sendo aprendido em confronto com os fatos vividos na comunidade, principalmente os fatos onde se revelam os desígnios de Deus para os pobres e pequenos que sofrem. Essa ligação entre a Bíblia e a vida é a fonte de fé, esperança e amor nas comunidades e é ela que anima a caminhada em busca do Reino.
2.4. O compromisso dos cristãos no mundo
A crescente integração entre fé e vida, fé e atuação transformadora, fé e compromisso político, torna hoje explícito o sentido último e decisivo de nossa ação no mundo: trata-se da antecipação do Reino que não se esgota nas limitadas conquistas históricas, mas passa necessariamente por elas. Se noutras eras também houve homens e mulheres, cristãos ou não, que de muitas maneiras lutaram pela libertação integral do homem, no passado era obscura a relação entre sua ação e as exigências da fé cristã. Hoje a vivência da fé cristã exige o compromisso de ação no mundo, o testemunho, o profetismo, e até a aceitação do martírio por fidelidade à missão. A compreensão cada vez mais difundida desta relação entre fé e compromisso na história é um dos fatos mais notáveis nesta Igreja de tantos mártires, em nosso país e no conjunto da América Latina.
3. Questões colocadas a partir da nossa prática
Esta caminhada da Igreja não se faz sem problemas. Enfrentando desafios novos e buscando novas formas de ação, encontramos pela frente lacunas e deficiências que nos atingem diretamente enquanto leigos. Não podemos agora recorrer a antigas fórmulas, por mais que valorizemos as experiências passadas, pois a fidelidade à Tradição e ao presente exige que encontremos maneiras novas de viver a mesma fé de sempre.
3.1. Quanto à presença no mundo
Nas nossas práticas concretas vamos construindo nossa identidade como aquela porção do Povo de Deus que mais profundamente penetra a massa a ser fermentada pela presença da Igreja e o anúncio da sua mensagem, na convivência cotidiana com todos os homens e mulheres. Se a Hierarquia tem a função de animar e celebrar sacramentalmente a missão da Igreja, a nós, leigos, cabe tornar efetiva essa mesma missão em todos os ambientes, em todos os grupos humanos, em todas as estruturas que devem ser humanizadas. Mas nem sempre somos identificados como Igreja, nem reconhecidos como presença da Igreja no mundo. É preciso, portanto, encontrar novas formas de reconhecimento do leigo para que nossa presença no mundo seja por todos vista como presença da Igreja.
Nossa espiritualidade é hoje encarnada na história, na efetiva vivência do compromisso transformador do mundo como opção de fé. A fidelidade à missão vem dar novo sentido à celebração sacramental, aos momentos fortes da expressão ritual, vinculando-se intimamente à nossa vida. Nossa forma de seguir Jesus, ou espiritualidade, tem como marca a luta pela vida e vida em abundância. Precisamos ainda aprofundar essa espiritualidade para que nossa ação seja sempre impregnada pela fé que lhe dá seu sentido último e decisivo.
Os atuais desafios que enfrentamos exigem melhor formação para o laicato. Ela deve ser formação na ação, isto é, partindo da ação sempre avaliada, criticada e interpelada pelo Evangelho. É preciso que nossas práticas sejam corrigidas ou reformadas, à luz da Palavra de Deus, para que sejam realmente fecundas. Além disso, muitos leigos são chamados a uma formação mais sistemática que lhes permita assumir tarefas especiais na Igreja, inclusive na área teológica. É bom que recebam uma formação conjunta com os clérigos, como já tem ocorrido.
3.2. Quanto ao lugar na Igreja
O leigo, homens e mulheres em condições de igualdade, tem o direito e o dever de participar da vida da Igreja. Por isso devemos participar ativa e responsavelmente das instâncias de decisão, de modo a assumir a missão da Igreja como nossa missão. A experiência de participação nas Assembleias do Povo de Deus, nos Conselhos e em outros organismos pastorais tem sido positiva e deve ser avaliada e incentivada.
O leigo é também desafiado a organizar-se autonomamente em estruturas eclesiais intermediárias: associações, movimentos, pastorais específicas e outras formas de articulação que melhor nos preparem e apoiem para o desempenho da nossa missão. A organização do laicato deve ser sempre intimamente articulada com a participação na comunidade eclesial, nos seus diversos níveis. Por isso esperamos ver incentivadas essas iniciativas, através das quais viveremos mais efetivamente a comunhão eclesial e aportaremos à Igreja nossa contribuição específica.
Conclusão
Aqui estão colocados em comum, nossa vivência, nossa visão, nossos problemas de leigos engajados à luz da fé e segundo os ensinamentos do Vaticano II.
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