CEBs NO CAMPO E NA CIDADE

CEB's NO CAMPO E NA CIDADE

V Superação do modelo paroquial de territorialidade.
As paróquias católicas se constituíram desde o século IV na mais genial territorialidade construída por uma instituição do porte da Igreja Católica. Nem o Estado conseguiu penetrar de maneira tão profunda na vida das pessoas como lograram fazê-lo as paróquias. O controle chegou a níveis incríveis, atingindo até as consciências e o for mais íntimo dos cidadãos. Porém, como Max Weber tão bem evidenciou o ditado medieval: “o ar da cidade faz livres”. Era inevitável que as paróquias perdessem esse poder de controlar o dia-a-dia dos habitantes da cidade. Os homens e mulheres urbanos vêm desafiando também o sistema cartorial católico, levando a cabo pelas paróquias. Simplesmente, não se casam mais. Continuam buscando uma benção para suas uniões, mas, cada vê z mais, rejeitam a burocracia que a acompanha. Outro fenômeno bastante presente no meio urbano é a busca de comunidades vivas, calorosas, independente do endereço geográfico. Assim, a territorialidade paroquial vai se reconfigurando de acordo com as territorialidades de seus freqüentadores. Nesse sentido, pode-se dizer que as paróquias no meio urbano sobreviverão se flexibilizarem suas fronteiras geográficas e se desburocratizarem no serviço às novas demandas sócio-religiosas. A comunidade do discípulo amado, no quarto evangelho, já intuía que o importante é a sintonia com a territorialidade de Jesus e não da religião oficial, afirmando que “vem a hora em que nem nesta montanha, nem em Jerusalém adoraremos o Pai” (Jo 4,21). Ou a paróquia se desdobra em comunidades de acordo com o mosaico de novas territorialidades urbanas, ou se transformará numa central burocrática de serviços religiosos, a espera de quem esteja disposto a submeter-se a seus critérios. É impressionante que muitos falam de pastoral da acolhida, mas poucos se dispõem a abrir novos espaços para as novas territorialidades. A meu ver, a instituição católica, ainda que reconheça a defasagem do modelo paroquial no contexto urbano, não tem forças para tomar uma medida mais radical porque não conseguiu ainda articular um novo modelo de sustentação do clero. Se tomarmos em conta os mais recentes documentos pastorais da Igreja do Continente e do Brasil, constataremos as inúmeras vezes que aparecem propostas de renovação paroquial. Desde o Plano de Emergência, elaborado pelo episcopado nacional, no período pré-conciliar, em 1962, até o Documento de Aparecida, passando por todos os documentos de Conferências Gerais Continentais, nos deparamos com o desejo de ver as paróquias sob um novo dinamismo. Daí é que me reforça a convicção de que há algo que vai além da estrutura paroquial que emperra sua reestruturação. Penso, portanto, que uma nova proposta de evangelização na cidade passa necessariamente por uma nova configuração ministerial. Esse modelo único de clérigo celibatário e de um só gênero só consegue ser sustentado pelo modelo paroquial e mesmo assim tal modelo enfrenta hoje sérios problemas explicitados pelas diferenças gritantes entre paróquias ricas e paróquias pobres. De nada adianta constatarmos uma nova onda de aburguesamento dos novos clérigos, que buscam sempre as melhores paróquias, se não enfrentarmos com criatividade e coragem esse problema. Frente às múltiplas formas de territorialidade que constituem o espaço urbano, somente com novos ministérios e com novas formas de solidariedade entre eles a Igreja conseguirá dar conta das demandas hodiernas de evangelização.

VI. Rumo a uma nova postura evangelizadora no meio urbano.
Apresento algumas pistas para uma pastoral urbana com enfoque nos conceitos de territorialidade e desterritorialidade. Essas pistas têm um profundo vínculo com uma proposta que vem sendo levada à frente por um serviço interessante na Arquidiocese de Belo Horizonte. Trata-se do CEGIPAR (Centro de Geoprocessamento de Informações Pastorais e Religiosas). Ele presta serviços de geoprocessamento e de pesquisas voltado para o campo das Ciências da Religião, com o viés da teologia pastoral, utilizando Sistemas de Informações Geográficas, em articulação com a Arquidiocese de Belo Horizonte. Dentre seus objetivos gerais, o CEGIPAR subsidia e assessora a Arquidiocese de Belo Horizonte em suas ações evangelizadoras e políticas administrativas e pastorais, através do geoprocessamento de todas as informações que lhe permitam identificar o perfil humano (social, político, econômico, histórico e cultural) e estrutural (funcionalidade, redes associativas, micropolíticas, equipamentos e recursos) de todas as instâncias pastorais. E na relação de seus objetivos específicos, o CEGIPAR se propõe a armazenar, geo-referenciar e aplicar as informações relativas aos recursos humanos dessas instâncias: clero, religiosos(as), ministros, agentes de pastoral, lideranças e funcionários, nos seus respectivos campos de atuação pastoral, criando perfis a partir de vários cortes de análise (gênero, faixa etária, formação, área de atuação, profissão etc), e mantendo-as atualizadas. E, ainda, elaborar o perfil dos grupos pastorais como base para a realização das ações pastorais intra e inter-paroquiais, levando em conta o que existe, como funciona, quem atua, quem coordena, onde atua, qual a abrangência, com quais recursos e qual a eficácia dessas ações. Por fim, o que nos interessa diretamente nesse seminário, esse serviço ainda se propõe a aplicar e gerenciar as informações disponíveis para o planejamento estratégico das atividades pastorais de todas as instâncias que configuram a Arquidiocese de Belo Horizonte, tanto no âmbito urbano quanto no rural, envolvendo-as no levantamento de dados, na identificação dos desafios e na sua análise, assessorando e subsidiando os projetos pastorais específicos que surgirem daí, a partir das exigências da evangelização: serviço, diálogo, anúncio e testemunho de comunhão, e nos âmbitos da ação evangelizadora: pessoa, comunidade e sociedade.
Com esse instrumento (CEGIPAR) ou algo análogo, o serviço de detectar as territorialidades e desterritorialidades que vão acontecendo se torna mais ágil e eficaz. Assim, permitem:
- Identificar na paisagem urbana os territórios demarcados por faixas etárias e classe social em diferentes bairros, ruas, avenidas e periferias;
- Ter noção da paisagem cultural urbana, identificando seus elementos;
- Reconhecer na espacialidade da cidade diferentes grupos sociais e sua territorialidade;
- Conhecer e identificar na paisagem urbana as territorialidades construídas em diferentes temporalidades no centro das metrópoles como as gangues, mendigos, crianças de rua e outros sujeitos excluídos do processo de produção;
- Ler nas pichações, na mendicância, na violência do trânsito e no comércio informal das vias de circulação a territorialidades das classes sociais excluídas;
- Perceber o fluxo cotidiano  de pessoas  na temporalidade diurna e noturna das ruas e avenidas  que geram diferentes territorialidades em função da apropriação  dos serviços e comércio urbanos;
- Identificar os processos de preservação e de depredação  do território expressos na paisagem;
- Compreender no cotidiano a noção de território e territorialidade, aplicando-a  na análise das situações que produzem a vida na cidade em forma de postal;
- Avaliar o papel das igrejas articulado com as ações sociais destinadas aos desterritorializados;
- Articular melhor os eixos apresentados pelo Documento de Aparecida (encontro pessoal com Cristo, revitalização da vivência comunitária, formação bíblico-doutrinal, compromisso missionário) com os âmbitos da evangelização (pessoal, comunitário e social)

VII. Indicações práticas para Diretrizes de Ação Evangelizadora.

Para responder às demandas do binômio da territorialidade/desterritorialidade, creio que precisamos enfocar melhor os âmbitos da evangelização: pessoa, comunidade e sociedade. Com cada um desses âmbitos, pode-se correlacionar o binômio acima, detectando suas novas expressões e abrindo perspectivas evangelizadoras afins. Pode-se, ainda, tomar os eixos presentes no Documento de Aparecida (226) para a configuração de Novas Diretrizes. Esquematicamente, ficaria assim:




NOVAS TERRITORIALIDADES
NOS ÂMBITOS

1º. Opção pelos pobres
Lugar epistemológico e tema transversal
2º. Encontro com Cristo
Pessoa
Comunidade
Sociedade
3º. Revitalização das Comunidades
Pessoa
Comunidade
Sociedade
4º. Formação Bíblico-doutrinal
Pessoa
Comunidade
Sociedade
5º. Compromisso missionário
Pessoa
Comunidade
Sociedade



VIII. Algumas palavras finais.
Há muito tempo, Comblin elaborou seu famoso livro Teologia da Cidade e já constatava que não faltam projetos e programas para uma atuação mais racional e eficiente da Igreja na cidade, mas sim vontade humana. “O que faz mais falta não são os dados nem os planos, nem os recursos, mas a vontade humana, a energia humana” (Comblin, p. 235). De fato, levando-se em conta o tempo gasto com reflexões sobre como atuar na cidade, como superar o modelo paroquial, chega-se ao impasse: ou somos incapazes de tal empreita ou falta realmente decisão para fazê-lo. Nessa ótica, Comblin afirma: “A atividade da Igreja será exercida mais na ordem da existência que na ordem do como, embora não exclusivamente, e isso porque o que mais falta é a vontade de procurar que as coisas existam” (Idem).
Nessa perspectiva de um trabalho mais existencial, precisamos resgatar como tarefa própria da Igreja no meio urbano, a dedicação forte, criativa e dinâmica de iniciativas em vista do incremento de alguns valores próprios do cristianismo: solidariedade, comunidade, justiça e comunhão. A solidariedade pode, segundo os planejadores da cidade, constituir-se numa metodologia, numa fonte de motivação; a comunidade, embora vivida de maneira mais intensa entre os pobres (bairros, periferias, favelas) é uma forma concreta de atualizar o cristianismo no espaço urbano; justiça como organização e distribuição dos bens e dos serviços, do poder e do trabalho de modo equitativo entre os habitantes da cidade; comunhão como utopia de priorizar as relações entre as pessoas, acima até da distribuição dos bens.
Para isso, a Igreja deverá impulsionar seus agentes na busca da vivência desses valores no contexto urbano, levando em conta tudo o que já foi dito sobre territorialidades e o buscando reavivar seu sinal urbano mais contundente: ser parceira profética dos desterritorializados.


Pe. Manoel Godoy
Diretor Executivo do ISTA
02/11/2010
  
As propostas de Aparecida

A V Conferência constata que tem havido novas experiências na prática pastoral urbana e destaca: renovação das paróquias, setorização, novos ministérios, novas associações, grupos, comunidades e movimentos. Porém, o DA ressalta também que ainda perduram “atitudes de medo em relação à pastoral urbana: tendência a se fechar nos métodos antigos e de tomar uma atitude de defesa diante da nova cultura, com sentimentos de impotência diante das grandes dificuldades das cidades” (DA, 513). Apresenta algumas propostas bem pontuais a cerca da pastoral urbana, desafiando essa frente evangelizadora para que:

a)      Responda aos grandes desafios da crescente urbanização;
b)      Seja capaz de atender às variadas e complexas categorias sociais, econômicas, políticas e culturais: elites, classe média e pobres;
c)      Desenvolva uma espiritualidade da gratidão, da misericórdia, da solidariedade fraterna, atitudes próprias de quem ama desinteressadamente e sem pedir recompensa;
d)      Abra-se a novas experiências, estilos e linguagens que possam encarnar o Evangelho na cidade;
e)      Transforme as paróquias cada vez mais em comunidades de comunidades;
f)       Aposte mais intensamente na experiência de comunidades ambientais, integradas em nível supra-paroquial e diocesano;
g)      Integre os elementos próprios da vida cristã: a Palavra, a Liturgia, a comunhão fraterna e o serviço, especialmente aos que sofrem pobreza econômica e novas formas de pobreza;
h)      Difunda a Palavra de Deus, anuncie-a com alegria e ousadia e realize a formação dos leigos de tal modo que possam responder as grandes perguntas e aspirações de hoje e se inseriram, nos diferentes ambientes, estruturas e centros de decisão da vida urbana;
i)        Fomente a Pastoral da acolhida aos que chegam à cidade e aos que já vivem nela, passando de um passivo esperar a um ativo buscar e chegar aos que estão longe com novas estratégias tais como visitas às casas, o uso dos novos meios de comunicação social e a constante proximidade ao que constitui para cada pessoa a sua cotidianidade;
j)        Ofereça atenção especial ao mundo do sofrimento urbano, isto é, que cuide dos caídos ao longo do caminho e dos que se encontram nos hospitais, encarcerados, excluídos, dependentes das drogas, habitantes das novas periferias, nas novas urbanizações e das famílias que, desintegradas, convivem de fato.
k)      Procure a presença da Igreja, por meio de novas paróquias e capelas, comunidades cristãs e centros de pastoral, nas novas concentrações humanas que crescem aceleradamente nas periferias urbanas das grandes cidades devido às migrações internas e situações de exclusão (Cf. DA, 517).

O DA também elenca uma série de iniciativas a serem desenvolvidas pelos agentes de pastoral “para que os habitantes dos centros urbanos e de suas periferias, cristãos ou não cristãos possam encontrar em Cristo a plenitude de vida”:

a)      Um estilo pastoral adequado à realidade urbana com atenção especial a linguagem, às estruturas e práticas pastorais assim como aos horários;
b)      Um plano de pastoral orgânico e articulado que se integre a um projeto comum às Paróquias, comunidades de vida consagrada, pequenas comunidades, movimentos e instituições que incidem na cidade, e que seu objetivo seja chegar ao conjunto da cidade. Nos casos de grandes cidades nas quais existem várias Dioceses, faz-se necessário um plano inter-diocesano;
c)      Uma setorização das Paróquias em unidade menores que permitam a proximidade e um serviço mais eficaz;
d)      Um processo de iniciação cristã e de formação permanente que retroalimente a fé dos discípulos do Senhor integrando o conhecimento, o sentimento e o comportamento;
e)      Serviços de atenção, acolhida pessoal, direção espiritual e do sacramento da reconciliação, respondendo á sociedade, ás grandes feridas psicológicas que sofrem muitos nas cidades, levando em consideração as relações inter-pessoais;
f)       Uma atenção especializada aos leigos em suas diferentes categorias profissionais, empresariais e trabalhadores;
g)      Processos graduais de formação cristã com a realização de grandes eventos de multidões, que mobilizem a cidade, que façam sentir que a cidade é um conjunto, que é um todo, que saibam responder á afetividade de seus cidadãos e, em uma linguagem simbólica, saibam transmitir o Evangelho a todos e a todas que vivem na cidade;
h)      Estratégias para chegar aos lugares fechados das cidades como grandes aglomerados de casas, condomínios, prédios residenciais ou nas favelas;
i)        A presença profética que saiba levantar a voz em relação a questões de valores e princípios do Reino de Deus, ainda que contradiga todas as opiniões, provoque ataques e se fique só no anúncio. Isto é, que seja farol, cidades colocada no alto para iluminar;
j)        Maior presença nos centros de decisão da cidade, tanto nas estruturas administrativas como nas organizações comunitárias, profissionais e de todo tipo de associação para velar pelo bem comum e promover os valores do Reino;
k)      A formação e acompanhamento de leigos e leigas que, influindo nos centros de opinião, organizem-se entre si e possam ser assessores para toda a ação social;
l)        Uma pastoral que leve em consideração a beleza no anúncio da Palavra e nas diversas iniciativas, ajudando a descobrir a plena beleza que é Deus;
m)    Serviços especiais que respondam às diferentes atividades da cidade: trabalho, descanso, esportes, turismo, arte...
n)      Uma descentralização dos serviços eclesiais de modo que sejam muito mais os agentes de pastoral que se integrem a esta missão, levando em consideração as categorias profissionais;
o)      Uma formação pastoral dos futuros presbíteros e agentes de pastoral capaz de responder aos novos desafios da cultura urbana.

CONCLUSÃO

Pode-se submeter as propostas de Aparecida a um fio condutor de todo o texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe. Tal fio condutor ou eixo se constitui de quatro dimensões do processo evangelizador:

1º. Favorecer o encontro pessoal com Jesus Cristo. Numa sociedade que passa rapidamente da religião de herança para a religião de escolha, os cristãos serão, cada vez mais, urgidos a dar a razão de sua esperança. Para tanto, nada substitui a experiência pessoal do encontro com a pessoa de Jesus.
2º. Abrir as comunidades para novas experiências. A comunidade sempre foi e será o ambiente próprio da verificação da autenticidade da experiência pessoal de fé. Reencantar-se com a Igreja – povo de Deus e de comunhão – exigirá um esforço sempre maior dos já conquistados na linha do testemunho inconteste de sua adesão a Jesus e a sua proposta.
3º. Superar o infantilismo na fé. Todos os itinerários apresentados por Aparecida para a formação de discípulos-missionários têm a pretensão de ajudar os cristãos a conhecerem mais a fundo a Palavra de Deus e a doutrina, necessárias para uma vivência cristã consciente e realizadora.
4º. Gritar o evangelho com a Palavra e com a Vida. A dimensão missionária é inerente à vida eclesial. E missão não se faz só com palavras e nem só anunciado a Palavra, mas com o testemunho cristalino do amor a Jesus, por meio do seu seguimento. Não há Igreja verdadeiramente cristã onde essa dimensão não emerge com força potencializadora de novas experiências eclesiais.



[1] CELAM. Documento de Aparecida – Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. São Paulo: Paulus e Paulinas, 2007, 300 p.

MATERIAL TRABALHADO POR Pe. GILVAN NO ENCONTRO DIOCESANO DAS CEB's DIOCESE DE CAETITÉ