quinta-feira, 3 de abril de 2014

Cuidar da Mãe Terra e amar todos os seres Leonardo Boff


Cuidar da Mãe Terra e amar todos os seres

O amor é a força maior existente no universo, nos seres vivos e nos humanos. Porque o amor é uma força de atração, de união e de transformação. Já o antigo mito grego o formulava com elegância: “Eros, o deus do amor, ergueu-se para criar a Terra. Antes, tudo era silêncio, desprovido e imóvel. Agora tudo é vida, alegria, movimento”. O amor é a expressão mais alta da vida que sempre irradia e pede cuidado, porque sem cuidado ela definha, adoece e morre.

Humberto Maturana, chileno, um dos expoentas maiores da biologia contemporânea, mostrou em seus estudos sobre a autopoiesis, vale dizer, sobre a auto-orgnização da matéria da qual resulta a vida, como o amor surge de dentro do processo evolucionário. Na natureza, afirma Maturana, se verificam dois tipos de conexões (ele chama de acoplamentos) dos seres com o meio e entre si: uma necessária, ligado à própria subsistência e outro espontânea, vinculado a relações gratuitas, por afinidades eletivas e por puro prazer, no fluir do próprio viver.

Quando esta última ocorre, mesmo em estágios primitivos da evolução há bilhões de anos, ai surge a primeira manifestação do amor como fenômeno cósmico e biológico. Na medida em que o universo se inflaciona e se complexifica, essa conexão espontânea e amorosa tende a incrementar-se. No nivel humano, ganha força e se torna o móvel principal das ações humanas.
O amor se orienta sempre pelo outro. Significa uma aventura abraâmica, a de deixar a sua própria realidade e ir ao encontro do diferente e estabelecer uma relação de aliança, de amizade e de amor com ele.

O limite mais desastroso do paradigma ocidental tem a ver com o outro, pois o vê antes como obstáculo do que oportunidade de encontro. A estratégia foi e é esta: ou incorporá-lo, ou submete-lo ou eliminá-lo como fez com as culturas da África e da América Latina. Isso se aplica também para com a natureza. A relação não é de mútua pertença e de inclusão mas de exploração e de submetimento. Negando o outro, perde-se a chance da aliança, do diálogo e do mútuo aprendizado. Na cultura ocidental triunfou o paradigma da identidade com exclusão da diferença. Isso gerou arrogância e muita violência.

O outro goza de um privilégio: permite surgir o ethos que ama. Foi vivido pelo Jesus histórico e pelo paleocristianismo antes de se constituir em instituição com doutrinas e ritos. A ética cristã foi mais influenciada pelos mestres gregos do que pelo sermão da montanha e prática de Jesus. O paleocristianismo, ao contrário, dá absoluta centralidade ao amor ao outro que para Jesus, é idêntico ao amor a Deus. O amor é tão central que quem tem o amor tem tudo. Ele testemunha esta sagrada convicção de que Deus é amor(1 Jo 4,8), o amor vem de Deus (1 Jo 4,7) e o amor não morrerá jamais (1Cor 13,8). E esse amor incondicional e universal inclui também o inimigo (Lc 6,35). O ethos que ama se expressa na lei áurea, presente em todas as tradições da humanidade: “ame o próximo como a ti mesmo”; “não faça ao outro o que não queres que te façam a ti”. O Papa Francisco resgatou o Jesus histórico: para ele é mais importante o amor e a misericórdia do que a doutrina e a disciplina.

Para o cristianismo, Deus mesmo se fez outro pela encarnação. Sem passar pelo outro, sem o outro mais outro que é o faminto, o pobre, o peregrino e o nu, não se pode encontrar Deus nem alcançar a plenitude da vida (Mt 25,31-46). Essa saída de si para o outro a fim de amá-lo nele mesmo, amá-lo sem retorno, de forma incondicional, funda o ethos o mais inclusivo possível, o mais humanizador que se possa imaginar. Esse amor é um movimento só, vai ao outro, a todas as coisas e a Deus.

No Ocidente foi Francisco de Assis quem melhor expressou essa ética amorosa e cordial. Ele unia as duas ecologias, a interior, integrando suas emoções e os desejos, e a exterior, se irmanando com todos os seres. Comenta Eloi Leclerc, um dos melhores pensadores franciscanos de nosso tempo, sobrevivente dos campos de extermínio nazista de Buchenwald:

Em vez de enrijercer-se e fechar-se num soberbo isolamento, Francisco deixou-se despojar de tudo, fez-se pequenino, colocou-se, com grande humildade, no meio das criaturas. Próximo e irmão das mais humildes dentre elas. Confraternizou-se com a própria Terra, como seu húmus original, com suas raízes obscuras. E eis que a “nossa irmã e Mãe-Terra” abriu diante de seus olhos maravilhados um caminho de uma irmandade sem limites, sem fronteiras. Uma irmandade que abrangia toda a criação. O humilde Francisco tornou-se o irmão do Sol, das estrelas, do vento, das nuvens, da água, do fogo e de tudo o que vive e até da morte”.

Esse é o resultado de um amor essencial que abraça todos os seres, vivos e inertes, com carinho, enternecimento e amor. O ethos que ama funda um novo sentido de viver. Amar o outro, seja o ser humano, seja cada representante da comunidade de vida, é dar-lhe razão de existir. Não há razão para existir. O existir é pura gratuidade. Amar o outro é querer que ele exista porque o amor torna o outro importante.”Amar uma pessoa é dizer-lhe: tu não poderás morrer jamais” (G.Marcel); “tu deves existir, tu não podes ir embora”.

Quando alguém ou alguma coisa se fazem importantes para o outro, nasce um valor que mobiliza todas as energias vitais. É por isso que quando alguém ama, rejuvenesce e tem a sensação de começar a vida de novo. O amor é fonte de suprema alegria.

Somente esse ethos que ama está à altura dos desafios face à Mãe Terra devastada e ameaçada em seu futuro. Esse amor nos poderá salvar a todos, porque abraça-os e faz dos distantes, próximos e dos próximos, irmãos e irmãs.

Dom Zanoni Demettino Castro 50 anos de luta pela democracia


Dom Zanoni Demettino Castro
Bispo de São Mateus (ES)
Neste ano de 2014 somos chamados a fazer a memória das nossas alegrias e esperanças, das nossas tristezas e dores. Neste momento, lembramos, sobretudo, os 50 anos da Ditadura, um dos mais dolorosos episódios da história do Brasil, que com o ato de força de 1º de abril, significou um golpe profundo para as instituições democráticas e durou longos 21 anos, jogando o País numa noite de terror, prisões, torturas, mortes e desaparecimento de pessoas.
Nasci e cresci num ambiente de forte resistência a essa situação. Aprendi, desde pequeno, que nem tudo que aparecia nos jornais e televisão correspondia à verdade. Conheci homens e mulheres honrados, muitos, imbuídos pela fé, que se engajaram seriamente contra este sistema, e, por esta razão, foram tratados como “subversivos”. Milhares de pessoas foram presas, torturadas e exiladas. Muitas foram mortas. Políticos tiveram seus mandatos revogados; cidadãos, funcionários públicos e militares foram demitidos; estudantes expulsos das escolas e Universidades. Imperava a Lei de Segurança Nacional. 
Lembro-me muito bem do meu pároco, cuidadoso e prudente com as palavras, quando nos ensinava o Evangelho, falando-nos do amor, da justiça, da democracia e da liberdade. Tocava no fundo do nosso coração as palavras do grande pastor e profeta, Dom Helder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife, silenciado pela ditadura: “quando dou pão aos pobres me chamam de santo, quando pergunto pela causa de sua pobreza me chamam de comunista.”
Esta data de forma alguma poderá ser esquecida. É, sem dúvida, uma oportunidade rica de refletirmos e debatermos a respeito da construção social e política do nosso país. Tempo propício de levantar questões sérias: Por que o Brasil acolheu esse Regime ditatorial e autoritário em 1964? Como a ditadura civil militar redesenhou esse País Continente e quais são hoje as suas marcas mais profundas? Como foi possível passar do autoritarismo para a Democracia?
Nossos jovens precisam saber o que de fato aconteceu. Por que tantos meninos e meninas daquela época entraram nesta luta? Quais eram os seus sonhos e a razão de tamanha coragem? Lembro-me, como se fosse hoje, da paródia da música “Tristeza”, que cantávamos no Colégio em que eu estudava em Brasilia, no final dos anos 70, com muito receio, mas com segura nitidez e grande orgulho. Pedíamos o fim da ditadura: “Figuerêdo, por favor vai embora, é o povo que implora, esperando seu fim. O meu salário diminui a cada dia, já é demais o meu penar. Quero de volta a Democracia. Quero de novo votar”. Havia um desejo de mudança, um sonho de justiça e liberdade.
Vejo com bons olhos o grandioso esforço da Comissão da Verdade. Por outro lado, percebo que muitos querem minimizar esse período de exceção. Chegam a afirmar que a Ditadura não foi tão dura assim e até defendem o seu retorno como remédio à violência e corrupção. São os mesmos que apoiam mortes, criminalizam os movimentos sociais e demonizam a política.
Graças a Deus a Ditadura foi vencida. Foi uma vitória da população brasileira, o sonho das Comunidades Eclesiais de Base que, desde os meados dos anos 70, com outras forças da sociedade, indo às ruas, denunciando torturas e mortes, articulando-se e mobilizando-se em favor da anistia, participaram de uma das mais espetaculares campanhas que este pais já assistiu, a Diretas já!
A luta pela consolidação da Democracia continua. Conseguimos a Lei Contra a Corrupção Eleitoral (Lei 9.840) e a Lei da Ficha Limpa. Agora, estamos empenhados para que essa vitória alcançada tenha suas bases ancoradas no direito, na liberdade e na justiça, por uma reforma do Estado com a participação democrática.