Comunidades eclesiais de base, um método de conversão pastoral
Por Pe. Nelito N. Dornelas
1. Um olhar sobre a nossa história
Jamais, em toda a história da
humanidade, apareceu de uma só vez tantas mudanças e tantas novidades ao mesmo
tempo, que influenciam e criam profundas transformações na vida das pessoas,
nas famílias, na experiência e na vivência religiosa do dia a dia, até mesmo
das pessoas mais simples.
As novidades no mundo atual são
carregadas de certa ambiguidade. Se de um lado, elas trazem grandes
oportunidades de emancipação das pessoas, sobretudo dos mais excluídos da
sociedade, criando oportunidade de uma maior consciência e de participação na
vida social, política e eclesial, de outro lado, elas apresentam também enormes
riscos e desafios.
Essas novidades, se bem orientadas, podem
contribuir para salvar a vida das pessoas e do planeta, entendido como uma
comunidade de vida ou, se mal direcionadas, colocam em risco a vida das
pessoas, sobretudo dos jovens, e de toda a comunidade de vida que as cerca.
As antigas visões sobre a vida, o ser humano, a
família, a educação, as relações sociais e as respostas que eram dadas até o
momento, fundadas em valores e princípios, muitos deles de inspiração cristã e
religiosa, hoje são insuficientes. Precisam ser reelaboradas e reorientadas
para dar garantia e consistência à nossa existência.
2. Eis alguns aspectos dessas novidades apontados
pelo Documento de Aparecida
No Documento de Aparecida, os
bispos apontam para a existência de profundas transformações (DAp 33) que
provocam uma mudança de época (DAp 44). Constataram a existência do alarmante
nível de corrupção na economia, envolvendo tanto o setor público quanto o setor
privado (DAp 70); a corrupção no Estado envolvendo os poderes Legislativo e Executivo
em todos os níveis, alcançando também o sistema judiciário, que muitas vezes,
decide em favor dos poderosos e gera impunidade, colocando em risco a
credibilidade das instituições públicas e aumentando a desconfiança do povo
(DAp 77); a exploração do trabalho que chega, em alguns casos, a condições de
verdadeira escravidão (DAp 73); a deterioração da vida social, com o
crescimento da violência, alimentada principalmente pelo crime organizado, o
narcotráfico e grupos paramilitares (DAp 78). Denunciam o desenvolvimento
econômico que não leva em conta a preservação da natureza, com danos à
biodiversidade, esgotamento das reservas de água e de outros recursos naturais,
contaminação do ar e mudanças climáticas. Apontam para a responsabilidade dos
países industrializados por levarem um estilo de vida não sustentável (DAp 66).
3. A missão evangelizadora da Igreja no contexto
atual
A
Encíclica Evangelii Nunciandi, do Papa Paulo VI, em 1975, já nos
advertia de que evangelizar não é para quem quer que seja um ato individual e
isolado, mas profundamente eclesial. Nenhum evangelizador é o senhor absoluto
da sua ação evangelizadora (EN 60).
Nessa mesma linha de pensamento,
o Documento de Aparecida faz vigorosa afirmação de que não há discipulado,
seguimento a Cristo sem comunhão, sem comunidade (DAp 156). Diante da tentação,
muito presente na cultura atual, de ser cristão sem Igreja e das novas buscas
espirituais individualistas, afirma que a fé em Jesus Cristo nos chegou através
da comunidade eclesial e ela “nos dá uma família, a família universal de Deus
na Igreja Católica. A fé nos liberta do isolamento do eu, porque nos conduz à
comunhão”. Isso significa que uma dimensão constitutiva do acontecimento
cristão é o fato de pertencer a uma comunidade concreta, na qual podemos viver
uma experiência permanente de discipulado e de comunhão entre os membros e com
os pastores, sucessores dos apóstolos.
As Comunidades Eclesiais de Base
são escolas que ajudam a formar cristãos comprometidos com sua fé, discípulos e
discípulas, missionários e missionárias do Senhor, como testemunhas de uma
entrega generosa, até mesmo com o derramar do sangue de muitos de seus membros.
Elas abraçam a experiência das primeiras comunidades, como estão descritas nos
Atos dos Apóstolos (At 2,42-47) (DAp 178).
Para desenvolver em seus membros
“o amadurecimento no seguimento de Jesus e a paixão por anunciá-lo”, a Igreja
precisa renovar-se constantemente em sua vida e ardor missionário,
transformando-se em redes de comunidades, promovendo a “conversão pastoral”. Só
assim a Igreja pode ser, para todos os batizados, casa e escola de comunhão, de
participação e solidariedade. Em sua realidade social concreta e em comunidade,
o discípulo e a discípula fazem a experiência do encontro com Jesus Cristo vivo,
amadurecem sua vocação cristã, descobrem a riqueza e a graça de serem
missionário e missionária e anunciam a Palavra com alegria (DAp 167).
4. A leitura da Bíblia e a experiência da pessoa de
Jesus Cristo
A grande contribuição das
Comunidades Eclesiais de Base, surgidas na década de 1960, foi o
redescobrimento da pessoa de Jesus Cristo a partir da leitura comunitária da
Palavra de Deus. Esse redescobrimento, em primeiro lugar, não ocorreu através
da investigação teológica, mas simplesmente porque o Evangelho reencontrou seu
próprio lugar, aquele lugar onde deve ser lido e onde se torna Palavra para
nós, a comunidade eclesial. Esse lugar é o mundo das pessoas simples, dos
pobres e excluídos.
A redescoberta da pessoa de Jesus
Cristo pelo povo simples das CEBs foi constatada pelo teólogo e cardeal Joseph
Ratzinger, hoje, nosso Papa Bento XVI. Assim ele a expressa:
Às vezes
parece ser tão complicado (ler a Bíblia) que se julga que só os estudiosos
podem ter uma visão de conjunto. A exegese deu-nos muitos elementos positivos,
mas também fez com que surgisse a impressão de que uma pessoa normal não é
capaz de ler a Bíblia, porque tudo é tão complicado. Temos de voltar a aprender
que a Bíblia diz alguma coisa a cada um e que é oferecida precisamente aos
simples. Nesse caso dou razão a um movimento que surgiu no seio da teologia da
libertação que fala da interpretação popular. De acordo com essa interpretação,
o povo é o verdadeiro proprietário da Bíblia e, por isso, o seu verdadeiro
intérprete. Não precisam conhecer todas as nuances críticas; compreendem o
essencial. A teologia, com os seus grandes conhecimentos, não se tornará
supérflua, até se tornará mais necessária no diálogo mundial das culturas. Mas
não pode obscurecer a suprema simplicidade da fé que nos põe simplesmente
diante de Deus, e diante de um Deus que se tornou próximo de mim ao fazer-se
homem.[1]
A grande descoberta da pessoa de
Jesus, feita em comunidade, levou os pobres e os simples a perceberem Jesus
como um próximo e uma Boa-Nova. Sendo Jesus entendido como Boa-Nova, ele traz
alegria, júbilo, gratidão e o compromisso com seu projeto de vida até o
martírio.
A Paixão de Cristo, interpretada
em comunidade, fez com que muitas pessoas descobrissem que não foi só Jesus
quem carregou a cruz e foi submetido aos piores tormentos. Sua Paixão se
inscreve no interior da paixão dolorosa do mundo. Seu sentido mais profundo
reside em sua solidariedade para com todos os crucificados da história. Da
consciência da relação da paixão do mundo com a Paixão de Cristo nasce o
desafio de enfrentar e superar as causas que as provocam, mediante o
compromisso com a justiça por uma sociedade fraterna e solidária, em vista do
Reino.
5. Opção pelos pobres, concretizada na proximidade
com os pobres
Assim expressa o Documento de
Aparecida:
Só a proximidade que nos faz
amigos nos permite apreciar profundamente os valores dos pobres de hoje, seus
legítimos desejos e seu modo próprio de viver a fé. A opção pelos pobres deve
conduzir-nos à amizade com os pobres. Dia a dia, os pobres se fazem sujeitos da
evangelização e da promoção humana integral: educam seus filhos na fé, vivem em
constante solidariedade entre parentes e vizinhos, procuram constantemente a
Deus e dão vida ao peregrinar da Igreja. À luz do Evangelho reconhecemos sua
imensa dignidade e seu valor sagrado aos olhos de Cristo, pobre como eles e
excluído como eles. A partir dessa experiência cristã, compartilharemos com
eles a defesa de seus direitos (DAp 398).
E mais:
A vida se acrescenta dando-a e se
enfraquece no isolamento e na comodidade. De fato, os que mais desfrutam da
vida são os que deixam à margem a segurança e se apaixonam pela missão de comunicar
vida aos demais. O Evangelho nos ajuda a descobrir que o cuidado enfermiço da
própria vida depõe contra a qualidade humana e cristã dessa mesma vida. Vive-se
muito melhor quando temos liberdade interior para doá-la: “Quem aprecia sua
vida terrena, a perderá” (Jo 12,25). Aqui descobrimos outra profunda lei da
realidade: que a vida se alcança e amadurece à medida que é entregue para dar
vida aos outros. Isso é, definitivamente, a missão (DAp 360).
Essa constatação feita pelos bispos em Aparecida
está muito presente na vida das CEBs.
6. Vida comunitária, fundada na fé e na Palavra: Um
sinal de esperança
No coração e na vida de nossos povos pulsa um forte
sentido de esperança, não obstante as condições de vida que parecem ofuscar
toda esperança. Esta se experimenta e se alimenta no presente, graças aos dons
e sinais de vida nova que se compartilha; compromete-se na construção de um
futuro de maior dignidade e justiça e aspira “os novos céus e a nova terra” que
Deus nos prometeu em sua morada eterna (DAp 536).
Essa esperança é um dom dos
pobres à Igreja: “Alenta nossa esperança a multidão de nossas crianças, os
ideais de nossos jovens e o heroísmo de muitas de nossas famílias que, apesar
das crescentes dificuldades, seguem sendo fiéis ao amor” (DAp 127).
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